quarta-feira, janeiro 18, 2006

Todos temos medo...

Abri a janela. Entraram dez mil corvos dentro da minha casa, esvoaçaram ensurdecedoramente pelos quartos, cagaram na cama, sairam de novo pela janela ainda entreaberta.
Espreitei o mundo lá fora. Queria fotografar estas crianças nuas com os meus olhos vermelhos. Queria espalhar essas fotografias pelas estações de metro da cidade.
Poder rir-me com as expressões assustadas dos bons cidadãos... Expressões de quem sente os seus segredos mais podres serem expostos na praça pública.
Todos temos medo.
Medo do julgamento dos desconhecidos, dos vizinhos, dos polícias, dos padres...

Todos temos medo...

Abri-te o coração.
Entraram dez mil lagartas dentro da minha cabeça. Comeram tudo o que restava. Deixaram-me oco.
E lá fora brincam as crianças nuas.

Todos temos medo dos dedos sem cara que nos apontam nas ruas.
Todos temos medo que nos dispam e nos obriguem a dançarmos em rodas loucas à volta de uma fogueira.

Abri-me.
Saíram de mim biliões de traças, envenenadas com as minhas entranhas.
Todos temos medo.

Todos temos medo das crianças que gozam os colegas no pátio da escola.
Todos temos medo do sorriso desdentado do puto da sala do 4º ano.

Na rua queimam-se dicionários. Enciclopédias. Saber. Para quê o saber??? Para quê ensinar crianças desdentadas que gozam os colegas da sala ao lado?
Vamos todos ser idiotas. Vamos todos ser assumidos. Vamos todos dançar em volta da fogueira...
Vamos ser controlados. Vamos ser drogados. Vamos ser violados. Vamos ser comidos.

Abrem esgotos e inundam-nos em merda...
No púlpito ergue-se uma voz... Ouvem? Erguemos os olhos vazios e gritamos palavras de ordem.
"SIM... SIM COMAM-NOS, VIOLEM-NOS, ROUBEM-NOS, FODAM-NOS, NÃO NOS OUÇAM, NÃO, NÃO, NÃO".

Dançamos ao som dessa canção. Todos completamente embriagados em volta duma fogueira.
Todos temos medo.

Todos nos cagamos de medo. Da polícia. Dos padres. Das vizinhas do rés-do-chão que nos cospem na rua porque ontem chegámos às 4 da manhã em casa.
"SIM, SIM MAIS, MAIS DROGA, MAIS ALIENAÇÃO, MAIS VENTRES DESTRUÍDOS"

Vamos todos abortar políticos na berma de uma estrada qualquer. Vamos todos embalar abortos nos braços roídos do tempo e das humilhações.
Vamos todos alimentar essas boquinhas esfaimadas de poder e mentira.
"SIM, SIM, VENHAM, VENHAM, TOMEM-NOS, ENROLEM-NOS, ENGANEM-NOS... NÓS QUEREMOS, NÓS AMAMO-VOS"

Vamos todos dançar. Dançar em volta da fogueira.
Dêem-nos pedaços de prazer. Dêem-nos sexo, drogas, futebol, televisão, alienação, dêem-nos péssimo ensino, dêem-nos livros inteiros totalmente desactualizados, obriguem-nos a sabê-los até não conseguirmos dizer mais nada senão palavras de ordem, sublimem mensagens político-psicológicas nas músicas, nos filmes, nos anúncios.

"Se quer ser feliz compre... Vai ver como passará a ter mais dinheiro, como vai ter filhos bonitos, asseados, alienados".
"Olha bem para mim, para as minhas coxas, como eu sei dançar, vê como vais ouvir o meu CD a bater punhetas com as minhas letrinhas românticas na mão enquanto vês as minhas fotos de maminhas ao léu".

Vamos todos dançar.
Todos temos medo.
Todos temos medo de sermos diferentes. De sermos desprezados. De não sermos parte dessa massa que ao mover-se nos leva consigo. Sempre protegidos. Sempre quentes.
"SIM, SIM, SIM, NÓS QUEREMOS SER MAL PAGOS, NÓS QUEREMOS PAGAR ESSE TEU SORRISO BRANCO IMACULADO, SIM, SIM NÓS QUEREMOS PAGAR AS VOSSAS GUERRAS, NÓS QUEREMOS O BUSH A BABAR-SE DE ORGULHO QUANDO PENSA NA SUA TRAPAÇA PRIVADA"
"SIM, SIM, SIM"

Todos temos medo. De sermos os corvos que entram na casa. Que cagam na cama.
Nós temos medo de sermos os pombos que devoram os monumentos com a sua trampa corrosiva.
Vamos antes dançar.
Vamos antes gritar.

"MAIS, MAIS, MAIS, ATÉ À OVERDOSE DE ESTUPIDEZ. VAMOS TODOS FINGIR QUE SOMOS LICENCIADOS, QUE SOMOS LETRADOS, QUE NÃO SOMOS ENGANADOS, VAMOS SORRIR, VAMOS MENTIR, VAMOS LEVAR OS NOSSOS CARRASCOS AO COLO, VAMOS ALIMENTAR VÍUVAS-NEGRAS, VAMOS DEIXÁ-LOS FODER-NOS E DEPOIS DEVORAREM-NOS... ELES QUEREM-NOS, ELES QUEREM-NOS ATÉ AO TUTANO E ISSO É TÃO BOM..."

Vê... Vê como é bom ser-se estúpido, como é fácil. Está escrito por toda a cidade, está escrito na tua testa, é-te ensinado pelos teus pais, pelos teus padres, pelos teus professores.
"És um menino bonito, toma lá um peixinho para te alimentar e agora faz mais um salto acrobático... só mais um".

Vamos ter medo até à morte.
Vamos ser xulados na morte. Vamos pagar para morrer. Vamos pagar para ser mortos nos hospitais. Vamos queimar livros, vamos endeusar a televisão, vamos fazer hinos à tesão, vamos ser nós, não vamos ser ninguém.

"Meus filhos, meus queridos, meus cordeirinhos, hoje vou retirar-me do vosso púlpito mas deixo aqui fulano para vos guiar... vocês são frágeis e precisam..."

"SIM, SIM, DEIXA-LO CONNOSCO, NÓS NÃO SABEMOS ANDAR, NÓS SÓ SABEMOS DANÇAR. NÓS PRECISAMOS DE ALGUÉM PARA NOS SUGAR É ESSE O NOSSO MAIOR PRAZER."

Vamos dançar...
Todos temos medo de pensar.
Todos temos medo de ousar dizer "eu sou...".
Todos temos medo de ter medo.
Todos somos aliviados dessa dor. Todos aprendemos a viver, sentados numa sala branca a ver televisão e a babar as camisas de forças.
Todos...
Temos...
Medo.

3 comentários:

Ricardo Ramalho disse...

Wow... :)

Não sei o que dizer, mas deixo uma pergunta no ar:
"Seremos motivados p'lo medo?"

Joaquin Gomez aka "Vendetta" disse...

Pelo medo, pela indiferença, pela ignorância…

Muito se fala e pouco se faz, infelizmente :(

Anónimo disse...

Grande texto!!!

É esta a nossa vida...é assim que, infelizmente, somos e....Temos medo!