sexta-feira, março 16, 2007

Uma carta carinhosa

Imagem de Theartr

São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apesar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Há três noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horríveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estúpida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o sono. É que, sem ter febre, eu tinha delírio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influência directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de ontem arreliado com cousas, que se estão atrasando, relativas à vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermédio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma série de notícias desagradáveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.

Depois, estar doente exactamente numa ocasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.

Vês, meu Bebé adorado, qual o estado de espírito em que tenho vivido estes dias, estes dois últimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausência, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quase três dias!

Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste ontem pelo Osório? Compreendo que estivesses também com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tais, que me doeu imenso ler a tua cartinha e ver o que sofrias. O que te aconteceu, amor, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa pior que te acontecesse? Porque falas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando dele, quando não tens para isso razão nenhuma?

Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimónia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remédio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sede e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.

Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.

Ai, meu amor, meu Bebé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu

Fernando

Fernando Pessoa

Sem comentários: